INTRODUÇÃO

2+2=4

É inexorável que a matemática nos possibilita utilizar de maneira imediata e em nível global redes sociais, nos permite calcular com precisão os movimentos celestes, colocar drones em marte e evita que nossos tetos caiam em nossas cabeças com engenharia precisa.

Ela nos faz carregar nos bolsos um computador com mais de 1 milhão de vezes a capacidade de memória do computador que levou o homem à lua, o qual contava com um processador de 0,043 MHz, comparado aos 2.490,000 MHz de um iPhone atual, ou seja, o telefone que você usa para fazer vídeos de TikTok é 100 mil vezes mais potente que o computador que nos levou ao maior feito da humanidade.

Cito tudo isso para dizer que a economia, ainda que uma ciência que trafega livremente em um misto de questões humanas, psicológicas, geográficas e históricas, é igualmente carregada de um forte arcabouço matemático, para horror dos heterodoxos.

Saímos da matemática para chegar na economia para dizer que a tal matemática, traduzindo, o dinheiro, não leva desaforo para casa.

Esta introdução serve à compreensão dos princípios que regem um fator fundamental para a economia: a Cautela.

O que os Bancos Centrais têm feito mundo afora, em nome da tentativa de reaquecer ou preservar as economias é diametralmente o oposto do que rege tal princípio, pois em tal cenário de dúvidas e novidades, sequer a academia conseguiu dar as respostas corretas à série de eventos que se instalou no planeta nos últimos 13 anos, o mercado muito menos e no fim, menos ainda os Bancos Centrais.

Em princípio, por alguma distorção que pode ter sido causada em partes pelo alto grau de digitalização da economia, fortemente impulsionada pela adoção da tecnologia 4G, com smartphones melhores e mais acessíveis a partir de 2010 (o que pode se convencionar como Amazon Effect para os bens e Uber Effect para os serviços), a inflação deixou de ganhar tração nas economias desenvolvidas, o que foi acompanhado da falta de tração da atividade econômica em algumas localidades (Europa e Japão).

Outro ponto seria a conversão da inflação de bens para a inflação de ativos de mercado financeiro, este ponto também carecendo de maior estudo na questão inflacionária, mas que ajuda a explicar desde 2010 um bom desempenho dos ativos de maior risco dos mercados em meio ao cenário desafiador.

A inflação de ativos decorre de uma injeção ‘indireta’ de recursos na economia via crédito barato, isenções e estímulos tributários: Age com impacto no resultado das empresas, que se convertem (em partes) em maiores investimentos, melhora do humor dos investidores e consequentemente, incremento da atividade econômica, ainda que parte destes recursos sejam utilizados por uma parcela das empresas em programas de recompras de ações, títulos e dívidas.

Em resumo, o crédito barato via M3 não gerou o fluxo de estímulos e investimentos esperados na cadeia produtiva e sim ajudou a inflar diversos balanços do Fed e de centenas de empresas, em especial daquelas impactadas por mudanças estruturais profundas na economia.

Neste contexto, precisamos levantar algumas hipóteses, dado o enorme desafio de contexto, entre elas:

·        A ampliação da base monetária, contrariando a perspectiva econômica mais ortodoxa, deixou definitivamente de gerar inflação?

Esta é uma pergunta que tem sido feita constantemente desde a adoção dos programas de alívio quantitativo, em resposta à crise das hipotecas de 2008.

Pelo conceito amplo de meios monetários nos EUA:

1.      M0 é o dinheiro (papel moeda);

2.      M1=M0 + mais depósitos à vista, ou seja, que não rendem juros;

3.      M2=M1 + os depósitos a prazo + títulos do governo em poder do público. Neste ponto, podemos considerar de modo simplista os depósitos a prazo como aquilo que de certa maneira remunera juros;

4.      M3=M2 + Repo + Emissões de Crédito Privado (CDs) + depósitos em Eurodollars

Vamos encerrar por aqui, pois o foco é exatamente o papel dos meios até M3 no cenário atual.

Reiteramos que os recursos disponíveis aos programas de alívio quantitativo (QE – Quantitative Easing) operados até recentemente não foram necessariamente destinados a injeção de recursos diretos na economia via M2, ou seja, dinheiro na mão e crédito facilitado e a abundante, nos moldes de 2011 no Brasil.

Ainda que tenha prestado o papel de achatamento dos vértices mais longos da curva de juros americana, o QE serviu em grandes partes para inicialmente limpar o balanço das empresas e instituições financeiras, algo muito importante naquele momento histórico e num segundo momento, serviu de instrumento de liquidez abundante ao mercado, levando à inflação de ativos, deflagrados pelo processo incialmente de recompra de ações de diversas empresas a baixo custo, até instrumentos mais complexos.

Observando assim, podemos considerar que boa parte do QE não ficou sequer em M2, poderíamos entender que se empoçou em grande parte em M3, também devido aos Repos.

Ou seja, recursos no balance sheet do Federal Reserve se expandiram fortemente, enquanto o dinheiro na mão do consumidor, o que “causa inflação”, acesso ao crédito cresceu lentamente, numa faixa de 6% aa em M2.

Ao contrário da premissa até 2018 de redução do balance sheet, o Fed retomou a partir de março de 2020 um processo intenso de compra de Treasuries (títulos do Tesouro americano) e de títulos lastreados em hipotecas (mortgage-backed securities) fora do sistema bancário em resposta à crise pandêmica, o que levou o rendimento dos títulos de 10 anos próximos de 0,5% aa em abril do ano passado, elevando o balance sheet para aproximadamente US$ 3,45 trilhões para os atuais US$ 7,69 trilhões.

Além disso, bancos comerciais têm comprado títulos do Tesouro de curto prazo e outros títulos de dívida, incluindo títulos lastreados em hipotecas, que no fim, se convertem em linhas de crédito, num processo da ordem de US$ 1 trilhão.

Neste contexto, observa-se um crescimento médio de 28,10% de M2 nos EUA, a maior alta desde a segunda guerra mundial, algo observado somente em 2009 na China, onde o aumento foi de 23% em média e trouxe inflação

No período, o índice de preços ao varejo em 12 meses saiu de -1,7% para 6,4% no período de um ano, (junho 2009 / junho 2010), o que levou o governo chinês ao enxugamento de liquidez, de operações de shadow banking e uma elevação de juros considerada até modesta, mas o topo da taxa em 10 anos, 6,55% aa.

De volta aos EUA, entre outros eventos, ainda existe a perspectiva de contínua compra de US$ 120 bilhões mensais em títulos por parte do Fed, totalizando US$ 1,44 trilhões a mais no sistema.

Aí vem a grande pergunta:

·        O M2 mudou mesmo nesta quantidade ao ponto de afetar o sistema?

Sim e não.

Sim, pois ocorreu a expansão real de M2 e não, pois ela não se traduziu necessariamente na expansão da oferta de crédito ao consumidor, assim como não ocorreu entre 2008 e 2018. 

Quando o Fed compra um título de uma instituição bancária, ele faz praticamente um processo de redução de compulsório, pois cria um saldo positivo na conta da instituição junto ao banco central americano.

Porém, isso não gera necessariamente uma expansão monetária, pois para a instituição financeira é uma conta de soma zero, uma mera troca de ativos.

Então, cria-se mais uma pergunta:

·        Onde está o perigo de tal expansão monetária acelerada?

Repetindo, na inflação.

Primeiramente vem da desvalorização da moeda, frente ao aumento expressivo de sua oferta, como coincidentemente ocorre com o dólar desde o seu pico de valorização em março do ano passado, até sua queda para os mesmos níveis de quatro anos atrás em janeiro de 2021.

O segundo efeito, como estrutura de referencial de bens e serviços, uma queda generalizada no valor da moeda pelo seu aumento de oferta ocasionaria um efeito inflacionário, ou seja, a inflação pode se traduzir não somente como elevação dos preços em uma economia, mas como a perda de valor da moeda frente ao conjunto macroeconômico.

Neste sentido, em visto do que acontece nos EUA desde 2009, trazemos mais um questionamento:

·        A estrutura inflacionária mudou tão radicalmente ao ponto de invalidar a teoria econômica vigente?

Esta pergunta tem sido feita já há algum tempo por economistas, pesquisadores e pelo próprio mercado, ainda sem uma resposta definitiva, mas com indícios importantes de mudança da estrutura inflacionária em países desenvolvidos.

O ponto crucial é que tal mudança não necessariamente se encaixa na maior parte destes países, pois na verdade, tem foco essencial na economia americana.

A disrupção do modelo tradicional de inflação poderia se convencionar que começou com a Amazon saindo do nicho de livros no início dos anos 2000, o que era a intenção da empresa desde o início.

A partir de 2005, ao adentrar no varejo como um todo, englobando praticamente toda a sorte de produtos, a Amazon gerou uma mudança tão profunda de cultura, que redefiniu e ainda redefine o consumo de bens e alguns serviços.

Umas das principais estratégias de marketing da Amazon, além efetivamente da comodidade de entrega na casa das pessoas em qualquer lugar do mundo, era a sustentação de uma política de preços baixos por um período relativamente longo, de forma a criar uma cultura definitiva ao uso da plataforma.

Tal estratégia, que custou praticamente 14 anos de prejuízos, acabou por compensar e muito, ao converter a Amazon na principal ferramenta de consumo dos EUA e uma das principais do mundo.

A partir daí que podemos convencionar um evento chamado “Amazon Effect”, onde a aquisição de bens de consumo tem como referencial primário o site, ou seja, antes de comprar qualquer sorte de bens, uma parcela significativa dos americanos usa a busca de preços na Amazon.com. (Observem no Apêndice 2 uma breve história do impacto de mudanças tecnológicas na humanidade).

Este seria em tese um dos primeiros pontos de inflexão importante na precificação de bens, porém outro fator de mudança de cultura, além dos avanços dos smartphones a partir do lançamento do iPhone em 2007 foi a adoção da tecnologia 4G a partir de 2010.

Com os smartphones em franca expansão global, a adoção de uma tecnologia de acesso à internet de maior velocidade não somente manteve e mantém as pessoas mais tempo à frente de seus celulares – no caso das gerações mais novas, mais do que na frente de um computador – como também trouxe a portabilidade das plataformas de consumo como a Amazon.

Deste ponto em diante, um consumidor poderia estar numa loja e antes de concluir uma compra, ganhou o ferramental para verificar antecipadamente os preços e em muitos casos, buscar melhores ofertas, com frete incluso, do que aquilo observado no momento da aquisição, dando a possibilidade de que a compra por impulso não perdesse seu ímpeto.

“Amazon Effect” encontrou um par importante na precificação também de serviços em dois efeitos interessantes: o Uber Effect e o Yelp Effect.

O Uber é mais conhecido no Brasil e teve papel importante na redução e redefinição do custo do transporte individual e criou novos modais de trabalho que se espalharam pelo mundo, assim como criou condições para redução do custo de entregas, ambientando o cenário para redução de custos de alguns serviços.

O Yelp tem menor adesão no Brasil, porém é uma plataforma muito utilizada nos EUA que publica avaliações do público de negócios como restaurantes, compras, vida noturna, comida, entretenimento e serviços como dentistas, escolas, estética, salões de beleza, médicos, academias e etc.

Tal serviço, assim como o Uber, criou uma cultura de busca na internet pela avaliação e precificação de serviços, fazendo o processo de concorrência mais brutal, dado que a relação custo/benefício fica cada vez mais explicita aos consumidores e de maneira imediata.

Para entendermos o impacto disso em termos inflacionários, tomamos como base de comparação o GDP PI (Gross Domestic Product Price Index – Índice de Preços do Produto Interno Bruto) o qual mede as mudanças nos preços pagos por bens e serviços produzidos nos Estados Unidos como um todo, incluindo aqueles exportados para outros países.

Ao observamos a oscilação em 12 meses da inflação do GDP PI trimestral na década comprimida entre os anos 1999 e 2009 nos EUA, a média do período foi de 2,07%, com maior registro aos 3,2% e mínima de 1,00%.

Para o período entre 2010 e 2019, a média para o mesmo período foi de 1,51%, com máxima de 2,5% e mínima de 0,10%.

É uma mudança significativa e coincide tanto com as mudanças tecnológicas, como culturais do período.

Obviamente, demanda-se um arcabouço teórico muito mais complexo e completo do que o observado nestas hipóteses (os diversos “Effects” e QE), com tempo igualmente grande de estudos, porém ao levanta-las, ao menos conseguimos trazer à tona possibilidades que soam concretas para explicar em partes o porquê da ausência de reação da inflação por um período consideravelmente longo.

Ainda que tais mudanças sejam relevantes e ajudem a explicar os aspectos mais recentes da menor amplitude da variação inflacionária americana, a questão da funcionalidade da Curva de Philips em meio a ‘novos’ modais de estímulos continua e reforça novamente a questão:

·        Onde está o perigo de tal expansão monetária acelerada?

Ainda que possamos entender que sim, ocorreu uma mudança profunda na dinâmica da economia americana, os 11 anos que antecederam a crise pandêmica foram marcados pela injeção limitada de recursos na economia, conforme citado anteriormente pelo empoçamento de recursos em M3 e inflação dos ativos de mercado financeiro.

Ocorre um aumento mais do que expressivo de M1 e M2 na economia americana desde a criação do CARES act (Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act – Lei de Ajuda, Socorro e Segurança Econômica do Coronavírus) no ano passado por Trump e se intensifica este ano com o pacote trilionário de Biden, que além dos cheques de US$ 1.400, se unem a um benefício federal de US$ 300 por semana, mais os benefícios estaduais aos desempregados. 

O programa de seguro-desemprego é um fundo federal, mas cada estado tem seu próprio programa com suas próprias diretrizes de qualificação, valores de benefícios e períodos de benefícios. Os programas estaduais operam com base em leis federais.

Há indicações também que a permanência sob tais programas ganhou contornos mais generosos do que no passado, quando a exigência pode buscar uma colocação após certo sob o programa período era aplicada.

Ou seja, não são somente as parcelas dos cheques de US$ 1.400 que têm sido despejadas na economia americana, mas os benefícios aos desempregados também têm sido igualmente generosos, aliados a toda sorte de outros programas, inclusive aos empregados.

Na conta, continuam os programas de alívio quantitativo do Federal Reserve, ainda sem prazo para serem revertidos e se converterem numa redução de balance sheet e normalização de juros.

Isto para citar somente o maior de todos, o programa americano, pois existem programas de alívio – quantitativo e de emprego – por toda a Europa, Ásia, além da expansão acelerada de crédito da China em diversos setores.

Se havia uma enxurrada de dólares derramada na economia, isso acabou de se tornar um dilúvio e os primeiros sinais de inflação se mostram presentes exatamente pela perda de valor generalizado do dólar, pressionados pelo choque de oferta.

A perspectiva de que o plano de infraestrutura do governo americano seja posto em prática já criou uma corrida por commodities e uma série de itens básicos.

Um exemplo disso foi a explosão do preço da madeira nos EUA, inicialmente como um efeito do home-office e pessoas aproveitando estarem em casa para promover reformas, mas existe um movimento de estocagem que tem gerado problemas de preços, na expectativa pelo consumo elevado do governo.

O Federal Reserve cita que o índice de preços de madeira serrada e derivados de madeira quase dobrou de abril de 2020 a fevereiro de 2021, a maior alta desde 1946, quando o boom imobiliário pós-Segunda Guerra Mundial começou.

Entre as commodities metálicas, além do recente problema entre Austrália e China, o minério de ferro e o cobre, itens altamente conectados à atividade econômica e à infraestrutura vem num ritmo considerável de alta nos últimos meses, acompanhado por platina e níquel.

Entre as soft commodities, a pressão de preços também é contínua e intensa.

Com exceção da carne bovina, há um viés de alta constante, o qual aparentemente não encontrou topo, com destaque ao milho e à soja.

O índice ISM PMI de preços pagos atingiu a maior marca na medição anterior à atual, a qual não era atingida desde 1984.

A alta mensal no custo de mão obra nos EUA deste mês, divulgada no Payroll foi a terceira maior da série histórica, sendo a segunda maior da mediana de 16 anos e tem como elemento a falta arraigada de trabalhadores nos EUA, especialmente aqueles ligados a serviços, em meio aos estímulos como auxílio-desemprego e cheques do governo federal, já elevando os valores pagos por hora em praticamente todos os estados, conforme demonstrado no relatório deste mês do BLS.

Todo o impacto de curto prazo vem ocorrendo a termo, pois sequer ainda sabemos o real tamanho do plano de infraestrutura de Biden, dada a resistência republicana e até de mesmo de parte dos democratas devido ao aumento de impostos considerado exagerado e também sequer sabemos o impacto em termos de emprego e atividade econômica, com consequência na inflação.

Neste panorama, tanto o Federal Reserve, quanto o Tesouro americano se sustentam na perspectiva de que o atual choque de inflação é temporário (dois meses seguidos de um ‘choque temporário’ destes mataria qualquer um eletrocutado) e também em qualquer indicador de atividade econômica que possa indicar ‘fraqueza’ com o Payroll de abril, com ‘somente’ 266.000 vagas criadas, ante mediana projetada de 1.000.000.

Embebidos nos programas de estímulo criados em 2008, potencializados pela crise em 2020 e com perspectiva de maiores incrementos de agora em diante, desta vez via estímulos nos moldes keynesianos pelos EUA, os mercados financeiros mantêm a veia estímulo-dependente e reagem sempre que se avizinha a possibilidade de normalização das taxas de juros em economias desenvolvidas e retirada do ‘cano estourado’ de dinheiro que irriga o mundo atualmente.

Todavia, os sinais são claros: a inflação já mostra sinais força no mundo e é capitaneada pelos EUA.

·    APÊNDICE 1:    Inflação Histórica

Porém, ainda que elementos como os citados de mudança de comportamento de consumo preservem uma menor oscilação dos preços relativos da economia, não devemos nos esquecer de algumas verdades inexoráveis sobre a relação da criação de moedas e a inflação.

O primeiro papel moeda conhecido na história foi o Jiaozi 交子務 no século XI na China, como substituição às pesadas moedas de prata que circulavam no período.

Era um recibo de depósito fiduciário, referendado ao seu valor de face, como ocorria na economia moderna até o abandono do padrão ouro durante a derrubada do acordo de Bretton Woods nos anos 70 e o fortalecimento do papel dos Bancos Centrais.

A adoção do Jiaozi wu trouxe a ‘brilhante ideia’ aos governantes e até mesmo ao setor privado chinês que o papel moeda seria uma fonte quase inesgotável de riqueza.

Por 5 anos de circulação, não houve um design padrão ou quaisquer limitações para a emissão do Jiaozi, quando finalmente as 16 maiores empresas mercantes de Sichuan fundaram o algo semelhante ao Federal Reserve, o “Banco de Notas de Papel” (Jiaozi hu 交 子 戶) que padronizou as notas para então serem reconhecidas pelo governo local com uma taxa de câmbio padrão de 30 wén por linha de dinheiro em papel-moeda.

A tentativa foi nobre, mas já era tarde, pois a emissão excessiva de moeda levou à falência várias empresas mercantes, induzindo o governo a nacionalizar a produção de papel-moeda, fundando o Jiaozi wu (交 子 務) em 1023.

Em resumo, havia uma quantidade maior de moeda em circulação, do que de prata disponível para referenda-la e a incapacidade do império cumprir com tal premissa, levou à hiperinflação, perda de valor do papel moeda, ao controles como bandas cambiais, restrição da oferta geral de papel moeda (poupança do Collor?) e de fluxo de metais, como o ferro e a prata, para tentar controlar o processo.

O ditado: “Aqueles que não se recordam do seu passado, estão condenados a repeti-lo” se mostrou presente mais uma vez, quando no ocidente surgiu também a criação e a primeira tentativa de adoção do papel moeda capitaneada por John Law, na França do século XVIII.

Law foi um economista escocês que distinguiu o dinheiro, um meio de troca, da riqueza nacional dependente do comércio e incitou o estabelecimento de um banco nacional para criar e aumentar os instrumentos de crédito e a emissão de notas bancárias lastreadas em terras, ouro ou prata.

Os problemas econômicos da França e forte volatilidade do câmbio, após sucessivas e dispendiosas guerras do rei Luis XIV deram abertura para que Law sustentasse a sua tese, que já havia sido rejeitada pelas autoridades escocesas, de emissão de um papel fiduciário, com lastro garantido pelo governo e de quebra de monopólios.

Em maio de 1716, Law apresentou uma versão modificada de seu plano de banco centralizado ao Banque Générale, que aprovou um banco privado que podia de emitir sua própria moeda, lastreada por “Louis D’Or”, moedas introduzidas por Luís XIII em 1640 para concatenar os “Livres”, a moeda em voga na época e altamente volátil.

Isso permitiu que a moeda fosse resgatada pelo peso de ouro, prata ou cobre do depósito original em vez do valor flutuante do Livre, que vinha se desvalorizando rapidamente.

Para desenvolver o papel moeda, Law criou o Banque Générale Privée – Banco Geral Privado em maio de 1716 e o nacionalizou dois anos depois, criando o primeiro “departamento do tesouro” com poder de emissão de papel moeda do mundo, também um Banco Central, chamado de Banque Royale, o que significava que as notas emitidas eram garantidas pelo rei.

Com a anuência do Duque de Orléans, o regente de fato na época, Law assume o posto de Controlador Geral de Finanças em 1720, com os seguintes feitos:

1.      Quebrou diversos monopólios;

2.      Retirou pedágios por canais, ruas e estradas de toda a França;

3.      Financiou a criação de ruas e estradas;

4.      Financiou uma série de novos negócios, até mesmo de artesãos de fora da França, atraídos pelas boas condições de negócios, crescimento econômico e crédito abundante;

5.      Tentou implantar uma forma de reforma agrária;

6.      Reviveu o comércio exterior francês, com o aumento da frota francesa de 16 para 300 navios;

7.      Refinanciou diversas empresas;

8.      Financiou a criação de sua própria empresa, a Mississippi Company, mais tarde renomeada como Occident Company e, eventualmente, parte da Companhia das Índias Orientais.

Este último ponto é importante, pois Law não só criou a segunda inflação mundial baseada em papel-moeda e a primeira ocidental, como criou a primeira bolha por este mesmo instrumento.

Todo este processo de crescimento acelerado, semelhante a planos fiscais irresponsáveis como vistos em diversos momentos do século XX tanto no Brasil como no exterior foi o responsável pelo crescimento econômico invejável da França em um período muito curto de tempo.

A euforia era generalizada com o forte impulso na economia, que relaxou fortemente os critérios de cessão de crédito, que já eram diminutos antes da adoção do papel moeda.

O clima de abundância levou do Pobre ao Nobre investir em aventuras como a Mississippi Company, onde Law exagerou o potencial da riqueza que viria da colônia francesa da Louisiana, nos EUA com um esquema de marketing eficaz, criando uma forte especulação selvagem sobre as ações da empresa em 1719.

A especulação foi tão grande, que para suprir a demanda, foram emitidas cada vez mais notas, de forma a dobrar a oferta de papel moeda, em relação ao que o Banque Royale tinha depositado em metal.

Entre maio e dezembro de 1719, o preço de mercado de uma ação subiu de 500 para 10.000 livres e continuou a subir no início de 1720 até 15.000 livres nos mercados futuros, apoiado pela promessa de dividendos de 4% aa de Law.

Não que a empresa não estive performando bem, afinal a Mississippi Company trabalhava no desenvolvimento dos territórios franceses dos EUA no vale do rio Mississippi, com excelentes resultados, tendo o monopólio do tabaco francês e do comércio de escravos africanos na região.

O problema é que Law propôs e convenceu o Duque de Orleans que os lucros acionários obtidos com a já convertida em Companhia das Índias Orientais (antiga Mississippi Company) seriam mais do que suficientes para cobrir a dívida pública da quebrada França.

Em outubro de 1719, a Law emprestou ao estado francês 1,5 bilhão de livres a 3% para pagar a dívida nacional, uma transação financiada pela emissão de mais 300.000 ações da CIO.

O segundo problema é que não somente as ações da empresa dispararam de preço, mas também as billets d’etat, as letras e notas da dívida pública francesa.

Como citado na literatura econômica clássica, aqui neste texto em diversas ocasiões e no passado, o excesso de moeda em circulação trouxe consigo a desvalorização da mesma em relação ao conjunto de valores da economia, ou seja, a inflação.

Notícias de que o Banque Royale tinha mais papel emitido do que moedas em depósito levou à corrida desesperada aos bancos, renovando a desvalorização e o valor do novo papel-moeda caiu pela metade.

Law foi forçado a fechar o banco por dez dias e limitar o tamanho de cada transação assim que o banco fosse reaberto e o governo francês foi forçado a admitir que a quantidade de moedas de metal que possuía em depósito era um quinto do número de notas de papel emitidas.

As filas nos bancos somente aumentavam a cada dia, a inflação já superava 20%, a de alimentos superava os 60% e as ações da CIO para 4.000 livres, para então 2.000, 1.000 e o preço final em 1721 de 500 livres, seu valor inicial, levando a distúrbios sociais, piquetes e saques.

Para evitar os saques (troca de papel por metal), um primeiro decreto real tentou desvalorizar o ouro à força, sem nenhum resultado prático, quando foi substituído por outro decreto que criminalizava a venda do ouro.

O desespero foi tal que levou a nova corrida aos bancos, tumultos e 50 pessoas mortas pisoteadas, levando à reversão do decreto.

Por fim, as ações da antiga Mississippi Company “viraram pó”, o governo francês quebrou mais uma vez, absorveu a empresa e suas dívidas e elevou impostos para cobrir o rombo de Law, este agora em desgraça, destituído de seu papel de controlador geral e diretor do Banque Royale.

Law foi forçado a deixar a França sem nenhum de seus bens, entre castelos e dezenas de chateaus e viveu seus últimos dias com vício em jogo, em diversas localidades da Europa.

Tanto no caso do Jiaozi, quanto na bolha do Mississipi, além de outros diversos exemplos através da história, a relação do volume de moeda em circulação na economia e o impacto que isso tem no conjunto de valores de bens e serviços parece ter pouca flexibilidade.

Ainda que mudanças importantes tenham ocorrido na digitalização da economia e nos patamares de preços durante os últimos anos, não existem evidencias de que teorias como a Modern Monetary Theory e o derrame de dinheiro a um custo fiscal incomensurável não tragam no futuro os mesmos efeitos históricos.

 “Aqueles que não se recordam do seu passado, estão condenados a repeti-lo”, disse sabiamente o filosofo George Santayana, afinal, mal havia terminado a bolha do Mississippi, nascia a bolha da Companhia dos Mares do Sul na Inglaterra.

·    APÊNDICE 2:    O Impacto Cultural e Econômico das Inovações Científicas e Tecnológias (exemplos)

Desde a descoberta do fogo, a humanidade passar por descobertas que redefinem seu rumo de maneira quase definitiva, a maioria de maneira bastante acelerada e a história recente está repleta de exemplos, tais como:

  •  A Revolução Científica, entre o final da Renascença e meados do séc. XIX, onde a adoção do método cientifico propiciou o surgimento da revolução industrial e adoção de maquinário a vapor;
  •  A descoberta das vacinas de primeira e segunda geração (Pasteur) e anestésicos em meados do século XIX;
  •  A descoberta do uso intensivo da eletricidade e todas as mudanças inerentes à sua adoção, que levou não somente a uma nova cultura mundial, como propiciou a Segunda Revolução Industrial;
  •  A criação do rádio e telefone e como ambos revolucionaram as comunicações;
  •  A criação dos veículos a combustão e as mudanças de cultura que levaram a alteração de ruas e estradas para acomodar a nova realidade;
  •  A descoberta da Penicilina;
  •  O surgimento da aviação, dividido entre Santos Dummont e os irmãos Wright;
  •  A primeira fase da Terceira Revolução Industrial (Revolução Digital), após os avanços tecnológicos propiciados pela segunda guerra mundial, sofrendo um salto com a descoberta dos transistores em 1947;
  •  A invenção da televisão e os primeiros aparelho de TV produzidos em massa a partir de 1947 e a completa alteração de cultura a partir dos anos 50;
  •  O sucesso dos primeiros transplantes de órgãos no início dos anos 1950, elevando mais uma vez a expectativa de vida;
  •  A criação dos chips de computador e circuitos integrados em 1960, reduzindo drasticamente a dimensão e a funcionalidade de aparelhos eletrônicos;
  •   A descoberta dos métodos contraceptivos em 1960, alterando definitivamente o papel da mulher na sociedade;
  •  A corrida espacial durante a guerra fria e todos as tecnologias advindas do processo;
  •  A segunda fase da Revolução Digital, com a invenção da Internet e o surgimento dos computadores domésticos, onde a Apple e a Microsoft tiveram papel fundamental;
  •  A terceira fase da Revolução Digital, com a invenção da World Wide Web (WWW), browsers, e-commerce, integração da Internet (Web 1.0);
  •  A quarta e atual fase da Revolução Digital, com Web 2.0, uso arraigado de smartphones, revolucionando o comércio, a indústria, os serviços, a comunicação e o entretenimento, com 60% da população mundial conectada;
  •  E a provável quinta fase da revolução digital, com:

o   O peso da adoção global das comunicações 5G e por satélite;

o  Computação quântica;

o  Motores elétricos eficientes;

o  Adoção de energia solar offgrid;

o  “Internet das Coisas 2.0”;

o  Propagação de cryptocurrencies e criptografias mais eficientes;

o  Corrida espacial privada.

Citamos esta série de exemplos para demonstrar que as mudanças que ocorrem da concepção ou criação dos eventos, até sua adoção em larga escala costumam alterar a cultura e o modus operandi de uma população num período muito custo, muitas vezes inferior à uma década.

Alguns breves exemplos:

O primeiro carro funcional e comercial foi criado em 1886. Dez anos depois, uma série de empresas já produziam carros e o primeiro modelo massificado (Modelo T da Ford) foi criado em 1908.

A patente do telefone elétrico surgiu em 1876 por Graham Bell e já em 1887, esta era a situação em Estocolmo, na Suécia, das linhas telefônicas.

As pílulas anticoncepcionais entraram em uso em 1960 e trouxeram um enorme impacto nas relações pessoais e de trabalho em diversas localidades do mundo, permitindo que mais mulheres encontrassem oportunidades de emprego e continuassem sua educação, como nunca ocorrido antes na história, pois não precisavam mais escolher entre um relacionamento e uma carreira. Gerou a base da revolução cultural dos anos 60 e mudanças nas relações entre gêneros nas décadas seguintes.

Entre a invenção dos transistores em 1947, com utilização em massa e a criação do chip e placa de circuitos em 1960, ocorreu uma revolução da eletrônica que sustentou tanto a corrida espacial, quanto o avanço e miniaturização dos computadores, que antes ocupavam andares de prédios e tinham baixa capacidade computacional.

Os primeiros computadores pessoais surgiram em meados dos anos 70, já eram massificados nos meios corporativos nos anos 80 e presentes nas residências em massa a partir dos anos 90.

Em 1979, a primeira rede funcional de celulares foi inaugurada pela NTT do Japão para telefones veiculares, mas já em 1990, a rede CDMA (2G) massificava globalmente os celulares.

Em 1997, a segunda leva de celulares surgia com diversas opções mais ‘inteligentes’ e foram precedidos pelos smartphones, em especial os blackberry, os quais foram superados pelos iPhones e semelhantes em 2007, dominantes no cenário até hoje.

Citamos os exemplos acima para demonstrar que a adoção de tecnologias como e-commerce, redes de dados mais rápidas podem ter tido um papel acelerado na alteração do modo como se precificam bens e serviços, em especial nos EUA, levedo ao Amazon/Uber Effect citado no texto.

Todavia, isso de certa forma disfarça os efeitos inflacionários mais duradouros, pois a forma como a injeção de recursos ocorreu no mundo desenvolvido, gerando um estímulo econômico que não necessariamente se traduziu em maior demanda agregada mascarou os efeitos da curva de Philips e a relação da inflação com a atividade econômica.

Ou seja, não é por que os QEs não criaram inflação na última década, que teorias de MMT são aceitáveis agora e que injeção de recursos via infraestrutura e moeda diretamente na mão do público não vai gerar inflação.

Já gerou.

No fim, o que continua a se demandar no mundo é Cautela, pois tal conta será cara e paga por gerações.