1 – PASS OU NÃO PASS, EIS A QUESTÃO

Uma discussão muito recente entre economistas colocou à luz a perspectiva de repasse (pass through) inflacionário de câmbio. De um lado, alguns não citam nenhuma preocupação com a perspectiva inflacionária, mesmo em vista à forte desvalorização do Real frente ao dólar, em resposta aos movimentos globais de aversão ao risco, onde se cita uma relação Real / Dólar de R$ 4,30.

Do outro, os que notam o caráter dolarizado da economia brasileira e a visão de que impactos cambiais recentes foram refletidos nos índices inflacionários.

Estamos na segunda ponta e nossa preocupação reside em alguns fatores importantes tanto na composição dos índices inflacionários no Brasil, quanto a desestruturação industrial do país nas últimas décadas.

2 – A INDUSTRIALIZAÇÃO E O DÓLAR NA ECONOMIA BRASILEIRA

Falando especificamente sobre a indústria nos últimos anos, o protecionismo estatal se tornou um câncer que corroeu o setor de dentro para fora.

Defendido figadalmente pela CEPAL nas décadas de 60 e 70 e adotado fortemente pelo regime militar, a política de substituição de importações fez algum sentido durante estas décadas, porém começou a perder muito sentido durante os processos de redemocratização dos anos 80 e com a globalização nos anos 90.

Um dos exemplos mais gritantes deste desgaste foi a reserva de informática de 1984, conhecida como Política Nacional de Informática (PNI) e a premissa era de que “os fabricantes brasileiros poderiam desenvolver uma tecnologia genuinamente nacional e estariam plenamente aptos para competir em pé de igualdade com suas concorrentes estrangeiras quando a reserva de mercado terminasse”, programa que sofreu forte oposição de economista Roberto Campos.

Basta dizer que o processo foi um fracasso retumbante. O cenário era tão caótico ao ponto em que diversos computadores fabricados no Brasil por empresas como Prológica, Microdigital, Gradiente, Sharp e Dismac eram camuflados como vídeo-games de luxo para evitar as taxações, pois alguns saiam de Manaus sem teclado, inserido somente nos centros de distribuição. A maioria destes computadores eram clones de máquinas de uso caseiro como TRS-80, ZX Spectrum, Apple II, MSX, de baixa utilidade em termos de produtividade.

Na linha industrial, a Cobra Computadores, gestada no projeto “Pato Feio” da USP (nome que faz muito sentido) foi a resposta brasileira na tentativa de se criar uma indústria local de tecnologia, porém só se sustentou no fornecimento para o governo e para uma série pequena de empresas, com qualidade totalmente aquém dos produtos fornecidos no exterior.

Ainda que o projeto tenha dado abertura para a criação de empresas como Scopus, Itautec, Sid e Elebra, o resultado foi muito mais a cópia de tecnologia estrangeira do que a criação genuinamente nacional e a maioria tinha custo muito acima da média mundial, era obsoleta e de baixa qualidade.

Para piorar, a lei atrasou e onerou a indústria local, já não muito afável a novos investimentos, dado o fechamento protecionista da economia. Como a lei impedia que equipamentos com similar nacional fossem importados, o atraso tecnológico afetou a produtividade de todos os setores, em especial automobilístico e têxtil. No fim, a maioria das empresas de tecnologia faliu ou foi incorporada, pois o programa falhou em alocar de forma competitiva os fatores de produção.

Uma leve reversão do processo ocorreu durante as aberturas comerciais no Brasil no governo Collor (lembram das carroças? Não é que ele tinha razão) e em duas ocasiões no plano Real, quando o processo serviu tanto para uma renovação do parque industrial (especialmente automobilístico) a fórceps, quanto para aliviar possíveis tentativas de repiques de preços, dada a memória inflacionária ainda presente nos primórdios do plano Real.

Para os críticos da abertura, o processo foi responsável pelo início da desconstrução da indústria brasileira da forma como ela estruturou nos últimos 60 anos ou mais. Aos apoiadores, o processo forçou uma competição industrial que o Brasil nunca tinha passado, com benefício nítido à população devido à redução de custos dos produtos e melhoria de qualidade.

Nesta celeuma, o problema é que ambas opiniões preservam algum nível de razão.

A competição que desmontou o que se conhecia como o parque industrial brasileiro, o qual sofria de problemas crônicos de competitividade e produtividade devido à obsolescência, também foi responsável pela melhora destes fatores, dada a elevação considerável de demanda agregada com o fim da hiperinflação e da maior exigência dos consumidores pós-plano Real, fazendo com que o coeficiente de penetração dos importados na produção nacional crescesse de maneira exponencial para suprir este novo cenário de maneira mais acelerada.

Desde então, a penetração de importados na produção nacional subiu para ¼, segundo dados da CNI de 2018, número que cresce muito em setores como eletrônicos (51,2%), outros equipamentos de transporte (55,4%), farmacoquímicos e farmacêuticos (47,3%), químicos (41,5%), têxteis (33,9%) e metalurgia (30,6%). A indústria de transformação depende 27% de importados e do total de 28 setores pesquisados, somente 4 operam abaixo de 10% e 10 operam abaixo de 20%.

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Dado o fechamento da economia brasileira e a série de barreiras alfandegárias e burocráticas para a importação, é impressionante como a baixa produtividade brasileira faz com que estes setores busquem a alternativa no exterior.

Isso ocorre, pois a competitividade da indústria brasileira é muito baixa diante de seus pares internacionais e ainda, a melhoria da competitividade industrial via câmbio é impraticável, sendo necessário reduzir o mal fadado custo-Brasil, as deficiências da infraestrutura, a matriz perversa de tributação, a monstruosa burocracia brasileira e o obvio problema crônico de má gestão.

2.1 – A COMPOSIÇÃO DA INFLAÇÃO E O PASS THROUGH

A discussão recente que gerou este artigo vem da hipótese propagada por diversos analistas de que o Banco Central, mesmo em meio à uma forte desvalorização do Real (R$ 4,30 é o número) pode dar continuidade ao afrouxamento monetário de maneira ininterrupta, pois mesmo tal alta do dólar tem um repasse (pass through) altamente limitado, devido ao hiato do produto negativo, incrementado pelo desemprego em alta, capacidade instalada ociosa e atividade econômica desaquecida.

Concorda-se que pelo lado da demanda, o efeito desalento econômico nem de longe é desprezível e a abertura do hiato (famosa cabeça de bacalhau) provoca a situação de atividade econômica em lenta recuperação, com óbvios efeitos deflacionários.

Todavia, é temerário desprezar por completo os efeitos de distúrbio do choque cambial na inflação marginal pelo lado da oferta, principalmente num contexto de oscilações cambiais excessivas, ou seja, as que tiram a previsibilidade de precificação de bens dos agentes econômicos.

O setor de alimentos, um dos setores de maior peso na inflação, ainda que se observe isento devido uma das menores penetrações de importações (4,3%), possui na sua composição itens sensíveis ao câmbio como processados, compostos na sua maioria de derivados de commodities, cotados em dólares, dependendo das flutuações internacionais de preços e inseridos fortemente na cadeia de consumo.

Estas cadeias mais comuns da indústria alimentícia são do trigo (farinhas, pães, massas, biscoitos e bolos industrializados), milho (grão, silagem, ração animal, cereal, energia, combustível, adoçante, indústria química) e soja (grão, silagem, ração animal, cereal, óleo, indústria química, combustível).

Tais itens são coincidentemente aqueles com menor elasticidade de demanda e podemos adicionar à conta a alta velocidade de reposição.

De acordo com Thomaz Sarquis, Economista da Eleven Financial, poderia se levantar o questionamento sobre a diferença entre o chamado “efeito primário”, caracterizado pelos repasses em alimentos e combustíveis, e “efeito secundário”, mais visível na inflação de tradables, pelo aumento no custo da cadeia, e não do produto em si. Poderíamos argumentar que o BC não se propõe a combater efeitos primários, só os secundários da depreciação cambial, atuando sobre hiato do produto pra reduzir demanda e compensar aumento inflacionário. É justamente por conta dos efeitos primários (ou qualquer choque de oferta) que existem as bandas de tolerância. Porém entramos em uma outra discussão: o BC deve seguir a meta com o índice cheio ou com alguma medida de core?

O impacto atinge também os combustíveis e com repasses mais rápidos devido à nova política da Petrobrás, além do álcool na composição da gasolina e os fretes no custo final dos produtos.

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3 – OS R$ 4,30 E A INFLAÇÃO

Num espectro mais amplo, o cenário de depreciação cambial contínua de até 10% sugeriria um repasse de 55 a 80 bps no IPCA em 12 meses. Com a mínima recente de R$ 3,7205 em 18 de julho de 2019, observamos uma desvalorização cambial de 11,5% e numa máxima de 12,75% quando o dólar atingiu R$4,1939.

Obviamente, tais parâmetros não servem para justificar, ainda, um repasse imediato de preços dentro do espectro do IPCA cheio, onde o Real tem desvalorização de 6,7% contra o dólar no acumulado do ano, mas está estável na comparação com o mesmo período de 2018. O período de choque cambial deve ser maior e mais direcional para dar margem ao repasse.

Porém, o ponto em discussão são os tais R$ 4,30 que sugerem alguns analistas não deve gerar um pass through significativo, especialmente no IPCA. Nestes níveis, comparando à abertura do mercado de câmbio de 2019, o Real amargaria uma depreciação de 13,7% no acumulado do ano e de 4% contra o mesmo período de 2018.

Ou seja, seria significativa o suficiente para gerar um possível repasse que na sua expectativa mínima testaria o teto superior da meta de inflação deste ano e transferiria algum nível de inércia para 2020, onde a meta é 25 bp menor do que neste ano.

O foco em citar alimentação e combustíveis, ainda que o IPCA cheio e os tradables tenham também uma resposta considerável à depreciação é devido à assimetria do pass through cambial nos diversos componentes do índice, onde a velocidade de repasse é consideravelmente maior no caso de depreciação, do que apreciação cambial, conforme observados nas estimações dos modelos VAR de Pimentel & Luporini & Modenesi, 2014.

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A questão é se é possível desprezar ou mesmo subestimar os efeitos da desvalorização cambial na inflação, mesmo com a demanda agregada reprimida em um cenário de excessiva volatilidade cambial e margens achatadas de produtores e varejistas.

Este achatamento de margem com um câmbio desvalorizado tem o potencial de gerar efeitos importantes de oferta em alguns bens de consumo e commodities, principalmente ao considerarmos a fraca recuperação econômica desde a recessão.

Outro fator é a preferência pela exportação, a qual ganha força entre diversos produtores e com o problema da gripe suína na China, que não tem ganhado muita atenção localmente, pode se tornar algo mais expressivo daqui até o final do ano, com impacto no custo de proteínas.

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4 – FATORES ATENUANTES DO PASS THROUGH

Além do citado no início deste texto, que pelo lado da demanda, o efeito desalento econômico nem de longe é desprezível e a abertura do hiato provoca a situação de atividade econômica em lenta recuperação, com óbvios efeitos deflacionários, citamos mais alguns pontos a corroborar com o controle inflacionário.

Non-tradables ainda tem um papel significativo na manutenção dos índices de inflação em controle, mais responsivos às suas variáveis exógenas do que endógenas, em vista à abertura do hiato do produto, ainda que sua medida reserve controvérsias.

Outro ponto relevante é a própria inflação baixa e expectativas ancoradas. Segundo Taylor, 2000,” a inflação é positivamente correlacionada com a persistência inflacionária, sugerindo que a baixa inflação em si pode causar um baixo repasse. A baixa inflação e a política monetária que a conduziu levaram a uma menor repercussão por meio de uma redução na persistência esperada das mudanças de custo e preço”

Ou seja, o nível corrente de inflação acaba por determinar a sua persistência, seja em qual direção for. Seguindo tal premissa, no Brasil hoje em dia o pass through é limitado pela ancoragem da inflação nos níveis atuais.

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‘efeito embalagem’,1 (Skrinkflation) como bem citado por Edson Ribeiro Silva, Gestor da Laic Asset também deve ser considerado, pois tem se mostrado um artifício para criar um repasse indireto de preços, através da redução dos volumes dos produtos.

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A inflação implícita, se comparada ao câmbio dessazonalizado (não pela taxa de câmbio), também dá abertura ao debate do espaço em aberto para os impactos inflacionários da depreciação do Real.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vista aos pontos aqui colocados, levantamos as seguintes conclusões:

A.     A economia brasileira, mesmo a de produção nacional tem em sua composição uma forte penetração do dólar, o que impede, por exemplo, que grande parte dos setores se beneficie de uma desvalorização cambial, levando inclusive ao efeito contrário. O choque cambial se mostra nocivo aos preços industriais;

B.     O item alimentação, ainda que tenha baixa composição de importados, tem como base matérias primas que povoam toda a cadeia produtiva, com precificação por commodities agrícolas nos mercados internacionais, milho e soja especialmente;

C.     A nova política de repasse de preços da Petrobrás incrementa a velocidade do pass through de câmbio e variações globais do preço do barril petróleo para os combustíveis;

D.     Os eventos da gripe suína na Ásia ainda estão submensurados no Brasil e dada a desvalorização cambial e redução de oferta, os chineses tem potencial de consumir uma parcela significativa da produção local, com impactos na oferta ainda este ano;

E.      Produtores, atacadistas e varejistas estão com dificuldade em evitar os repasses, dada a instabilidade cambial e fenômeno é atenuado em diversos setores, em especial de alimentos, através da redução volumétrica e manutenção de preços;

F.      Dólar a R$ 4,30 extenua a capacidade de represamento de preços e pode ameaçar as metas de inflação deste e do próximo ano;

G.    Pelo lado positivo, non-tradables tem impacto cambial limitado e abertura do hiato do produto garante em partes o controle de preços, em especial no setor de serviços, garantindo ao menos uma inflação subjacente mais fraca;

H.     A inflação implícita, quando comparado com a taxa de câmbio falha em demonstrar tendência, pois dá a impressão de que a variação marginal da divisa não impacta nos preços. A inflação implícita mais um reflexo do wishful thinking do mercado quanto a curva de juros futuros, do que uma projeção ou antecipação de movimento;

I.       Porém, ao se comparar à taxa de câmbio dessazonalizada, nota-se que ambas ainda seguem na mesma direção e existe espaço para repasse de uma possível depreciação da moeda, porém em níveis acima dos atuais, a situação começa a mudar rapidamente;

J.       As atuais variações cambiais ainda não tiveram tempo de impactar os índices de inflação como um todo, porém alimentação e transportes podem sinalizar em breve tais movimentos;

K.     A tese de pass through do professor John Taylor diz que a inflação baixa gera um efeito de contenção nos repasses, por retroalimentar as expectativas de inflação ancorada;

L.      A atual inflação seria um fator de contenção dos repasses, porém nada ainda comensurável à uma desvalorização mais constante e por um maior período de tempo;

O recente corte de juros e a sinalização dovish do Banco Central expôs o país às incertezas do cenário global, que acabaram por se concretizar com o problema da eleição argentina e a forte aversão pelo prêmio de maior risco em emergentes, com consequente impacto no Real.

A venda de reservas tem dificuldade em reverter a desvalorização recente da divisa brasileira, porém pelo lado positivo, reduz o impacto na dívida bruta, emitindo um sinal fiscal positivo ao exterior.

A resolução da guerra comercial será o fator decisivo para evitar o colapso do atual cenário de emergentes e na atual taxa de câmbio, o Brasil pode ser um dos primeiros da fila para oferecer um ‘saldão de boas ofertas’ aos investidores estrangeiros.

Por fim, o cenário atual conta muito com a abertura do hiato do produto, que tem entre os economistas um enorme diferencial de medidas e resultados, podendo a medida de PIB potencial ser essencialmente menor do que se projeta atualmente.

Deste modo, sinais mais positivos da economia podem se converter em melhora da demanda agregada com uma velocidade acima das medições atuais, evento sequer testado pela atual política monetária, inserida num ciclo de juros baixos desde março de 2018.

  1. Efeito Embalagem, popularmente conhecido como ‘maquiagem do produto’ é um artifício utilizado pela indústria para auferir aumento de preços em produtos sem alterar os preços, através da redução volumétrica. Ainda que tais reduções tenham amparo legal, desde que claramente informada aos clientes e sejam acompanhadas da redução proporcional do VALOR FINAL o aspecto moral continua a ser questionado e em muitos casos, somente a redução de volume é efetuada.