Um belo dia comecei a operar NTN-B.
Não, não foi bem assim… Um belo dia eu fui levado a operar NTN-B. E como para qualquer outro trader, operar NTN-B para mim significava nada mais do que operar qualquer outra coisa. Um trader é capaz de operar realmente qualquer coisa, até mesmo uma bolinha de pingue-pongue pulando: ele irá operar quantas vezes ela pode pular em 10 segundos, ou qual a altura máxima alcançada após seu primeiro impacto com o solo, e assim por diante, sem a menor cerimônia em colocar algum dinheiro (ou muito dinheiro) nessas especulações despropositadas.
Quando eu tirei a minha primeira boleta de NTN-B eu nem parei para pensar no que está por trás de tudo aquilo, na confiança implícita que existe, por exemplo, de quem compra aquele negócio na capacidade que aquele negócio tem de proteger o capital aplicado da inflação.
Como assim? O que eu quero dizer é o seguinte: um computador, se bem programado, poderá recomendar inúmeros trades de NTN-B de vários vencimentos ao longo do ano, sem sequer fazer a mínima idéia de que aquele bond é indexado a IPCA ou mesmo que o propósito daquele título é proteger o capital da inflação.
Basta que eu ofereça, por exemplo, parâmetros para que ele olhe algumas inclinações bizarras da curva de DI (e que tendem a ficarem ainda mais bizarras com os erros do BC – assunto para outro artigo), ou alguns valores específicos de “break even de inflação” (que nada mais é do que uma diferença numérica) e pronto! Temos um excelente trader de renda fixa em ação, à base de silício, mas ainda assim, um trader de renda fixa.
Um belo dia comecei de fato a “correlacionar” a idéia da NTN-B com o meu bolso. Como? Simples.
Recebi um comunicado do meu plano de saúde avisando sobre um reajuste de mais de 10%. Olhei para alguns remédios que ocasionalmente compramos e vi que haviam sido reajustados em até 15% de um ano para outro. Recebi o aviso da escola do meu filho de que as mensalidades seriam reajustadas em 15%. Fui comprar tomate no supermercado e custava mais de R$ 7,00 o quilo e eram tomates de péssima qualidade…
De repente, no meu bolso parecia que minha inflação estava rodando a incríveis 25% ao ano ou mais! Foi a sensação que eu tive pelo menos, quando me dei conta de que a pizza do bairro não saia mais por menos do que R$ 40,00 (não sei por que, mas toda vez que ligava na pizzaria eu imaginava um número menor, coisa de velho que reluta em acompanhar o passo do tempo), que o tênis do meu filho não custava menos do que R$ 70,00 (ué, R$ 70,00 não era o preço do meu sapato até pouco tempo atrás?) e que a fatura da minha TV a cabo já beirava os R$ 300,00 (tenho certeza que há dois anos comprei esse produto por R$ 240,00).
Pensei com meus botões: ora, para me proteger disso basta carregar um punhado de NTN-Bs. Afinal, ao contrário das bolinhas de pingue-pongue ou dos softwares quants é para isso que elas servem. Não?
Meu primeiro calafrio foi sentido quando o governo anunciou um IPCA fechado para o ano de 6,50%, redondinho, exatamente no limite superior da banda de flutuação do IPCA ao redor da meta central de política monetária do Banco Central do Brasil. 6,50%… Quer dizer, quem carregou uma NTN-B ao longo daquele ano à, digamos 4,5% de cupom, recebeu estes 4,5% mais o IPCA redondinho de 6,50%, e ficou feliz, porque corrigiu sua inflação e ainda ganhou um bom juro real. Certo?
Deveria ser, mas engraçado… Eu não consigo sentir isso no meu bolso! No meu bolso eu realmente só consigo sentir aqueles reajustes altíssimos de tudo, só consigo sentir uma alimentação absurdamente cara em um país que em tese deveria ter comida barata, só consigo sentir meu dinheiro sendo corroído rapidamente, e ferozmente, por um aumento de preços que não me parece ser corretamente espelhado pelo IPCA.
Aquele trader original da NTN-bolinha de pingue pongue “panicou”. A coisa é mais séria do que parece. A cabeça começou a funcionar e pensou o seguinte: olhando do lado do passivo, como a coisa fica então?
Do lado do passivo funciona assim: “eu devo, não nego, pago quanto quiser”… Te devo em IPCA, mas sou eu quem divulga o IPCA. Se eu digo que o IPCA vale 6,50% ao ano, então eu te pago 6,50% ao ano, nem um centavo a mais, não adianta me pedir.
Do meu caixa, é isso que vai sair, e mais algum “juro real” para que você se sinta bem (gostam de veicular na mídia que o Brasil é recordista de juros reais, sempre dá muito Ibope colocar isso nas páginas de entrada dos portais de notícias, a oposição que hoje é situação usou muito o juro real recorde para criticar a política “neoliberal” do FHC que o Lula reinventou).
Ao mesmo tempo, tem dinheiro entrando, via tributação, e quanto mais inflação houver, nominalmente mais dinheiro vai entrar, já que os tributos são alíquotas que incidem sobre o preço – ou custo – das coisas. Qual inflação? O mesmo IPCA que eu pago? Não, claro que não, não seja tolinho… Não precisa ser… Desde que seja a inflação real!
A bolinha de pingue-pongue já bateu muito no chão, o chão está quente, e ela está derretendo, e o trader então pensa: bom, mas então para quem tem o passivo, se a inflação real for maior do que o IPCA, tanto melhor! Não?
Pausa. Vamos dar um voto de confiança meu caro. Nada dessas teorias de conspiração, de ficarmos procurando motivos escusos para se alcançar fins desejáveis em qualquer ação do governo. Deixe Maquiavel para o Maquiavel. O governo age de boa fé: a inflação é uma só, medida pelo IPCA, e ponto final…